terça-feira, 23 de dezembro de 2014

#42 - FOZ DO ARELHO OU PRIMEIRO POEMA DO PESCADOR

Este é apenas um pequeno lugar do mundo
um pequeno lugar onde à noite cintilam luzes
são os barcos que deitam redes junto à costa
ou talvez os pescadores de robalos com suas lanternas
suas pontas de cigarro e suas amostras fluorescentes
talvez o Farol de Peniche com seu código de sinais
ou a estrela cadente que deixa um rastro
e nada mais.

Um pequeno lugar onde Camilo Pessanha voltava sempre
talvez pelo sol e as espadas frias
talvez pelas orquestras e os vendavais
ou apenas os restos sobre a praia
«pedrinhas conchas pedacinhos d'osso»
e nada mais.

Um pequeno lugar onde se pode ouvir a música
o vento o mar as conjunções astrais
um pequeno lugar do mundo
onde à noite se sabe
que tudo é como as luzes que cintilam
um breve instante
e nada mais.


Foz do Arelho, 8.8.96

domingo, 21 de dezembro de 2014

#41 - DESAMPARO, José Agostinho Baptista

Não posso olhar de frente as torres deste castelo
habitado pelas trevas.
Quando os lobos uivam e aberta já está a lua,
as flores amargas dos teus olhos
desfazem-se aos meus pés.
E o pó, as cinzas, os restos de tudo o que
respirava,
amontoam-se à beira deste mar.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

#40 - AULA, Charles

a luz da lua prateia a planta
um bocejo dentuço engole a noite

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

#39 - SANTO E SENHA, Miguel Torga

Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

#38 - ALARIDO, Henriqueta Lisboa

E veio a noite do alarido.

A noite clara, a noite fria,
com perfurados calafrios.

A noite com punhais erguidos
e olhos devassando perigos.

A noite cava, com ladridos
de cães atiçados. E espias.

A noite com tremores lívidos
e com membros estarrecidos
diante das ovelhas suicidas.

A noite de mármore e níquel
despedaçando-se em tinidos
no cristal violento das criptas.

Montanhas de ferro em vigília,
longas árvores comprimidas
e astros de fogo em carne viva

pasmaram de tanto alarido.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

#37 - AS ROSAS, Sophia de Mello Breyner Andresen

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

#36 - NOITE DE TORMENTA, Ribeiro Couto

A mão do vento é má e me procura;
fria, contra o meu rosto a não quisera,
mão que saiu de alguma sepultura
da mais perdida, mais remota era.

Nenhuma porta mais está segura:
o vento trouxe alguém que ali me espera,
alguém que com cicios de conjura
ri escarninho do pavor que gera.

Em noites de tormenta como esta,
penso na mão que outrora me acudia,
meigamente pousada em minha testa.

Cessou a chuva. O vento já não ouço.
A casa é como um berço... Principia
seu brando movimento de balouço...

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

#35 - FAROL ETERNO, Cândido Guerreiro

Decorreram os anos. Pouco a pouco,
O vendaval, à solta, por vingança,
Quebra os vitrais e pela igreja avança,
E rompe em uivo prolongado e rouco...

E foge, e torna, e, com a chuva, louco,
Em desvairado sacrilégio, dança,
E abate claustros e ao abismo os lança,
E tudo alui, da abóbada ao cabouco...

Tudo caíu... Mas uma claridade,
Azul, fugaz, em noites muito escuras,
Ondula e sobe e, entre os escombros, erra...

-- Oh! a sobrevivência da piedade! --
São fogos fátuos, são as sepulturas
Ainda agora a alumiar, da terra...

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

#34 - NOITE, Armando Taborda

Pergunto à noite
sombria
o que é que sobra 
do dia?

Claramente de dia
a sombra
é mais negra
que a noite.

domingo, 19 de outubro de 2014

#33 - PASSOS DE VELUDO (título póstumo), Ana Luísa Amaral

 Do not go gently into that good night
                                                                                                                                                                                                                                    Dylan Thomas

Não permitas que a noite se desabe,
habituada e negra. Antes confunde
as regras e as sombras que lhe obedecem,
cegas. Não descanses olhar sobre
o vazio, nem no silêncio seduzindo
em nada. Aqui: címbalo, pífaro, assobio,
ou tampas de barulho avesso à almofada.
Grita, blasfema, geme em timbre agudo,
mas não deixes a lua, com passos de veludo
entrar pela ombreira, sentar-se e conversar.
Nem lhe ofereças um lar de cabeceira
e penumbra doente. Argumenta-a de frente
e à seda roçagante dos seus passos;
numa filosofia de algibeira,
resiste-lhe o abraço cultivado. E rasga
a sua máscara ausente de suor. Não entres
docemente nessa noite. Não entres
tão depressa.

domingo, 12 de outubro de 2014

#32 - O ACENDEDOR DE LAMPIÕES, Vergílio Alberto Vieira

De tanto bater à porta
Da noite que à noite cai,
Ninguém com ele se importa
Nas ruas por onde vai.

De volta a casa, não diz
Como aprendeu a acender
Estrelas que o fazem feliz
Porque não querem morrer.

sábado, 11 de outubro de 2014

#31 - NOITES DE MACAU (1), António Augusto Menano

Da boca da noite soltam-se as sombras,
encostam-se aos muros,
deitam-se no asfalto.
Por vezes atravessam as ruas
a correr.
Junto ao Lou Lim Leoc
eu vi duas mulheres
saírem de uma casa
cor de rosa.
Gritavam aos deuses tailandeses,
traziam os cabelos soltos,
e choravam.

sábado, 4 de outubro de 2014

#30 - HORA CREPUSCULAR, Ana Luísa Amaral

Só, na noite. O vazio do intrincado espaço
da memória, teia quase perfeita de finos
nervos. Como num bastidor, quebrou-se agulha,
rompeu-se o fio de seda, ou lã macia.
Ou foi só o crepúsculo que, dissonante, entrou?

Só, na noite, no vazio intrincado do pensar.
Mas, se brilho na teia? Se segundo qualquer crepuscular
à cabeceira, onde medicamentos 
e pequenas flores? Que olhar nos é negado?
Alguém em limiar ou tempo ausente?

De encontro aos cobertores, que frio maior?
O frio nos fios da teia em desconserto. E rotos. 
Mas, se alguma candeia de século passado,
o azeite a manchar o bastidor? Só, na noite.
Sem deuses, nem demónios. A teia a oscilar,

sem som.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

terça-feira, 23 de setembro de 2014

#28 - "Como está sereno o céu", Marquesa de Alorna

Como está sereno o Céu,
como sobe mansamente
a lua resplandecente,
e esclarece este jardim!

Os ventos adormeceram;
das frescas águas do rio
interrompe o murmúrio
de longe o som de um clarim.

Acordam minhas ideias,
que abrangem a Natureza,
e esta nocturna beleza
vem meu estro incendiar.

Mas se à lira lanço a mão,
apagadas esperanças
me apontam cruéis lembranças,
e choro em vez de cantar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

#27 - FUGA, Nuno Júdice

Canto a noite dos clandestinos, os que se
encostam aos muros e falam com o vento,
os que se vestem de negro, para se confundirem
com a noite, os que se deixam perseguir pela
sua sombra, e a expulsam de trás de si, quando
alguém se aproxima. Acompanho os seus gestos lentos,
saboreando o instante do próximo
encontro; e ouço as suas palavras na voz baixa
do cais, confundindo-se com
o ruído da água contra a pedra. Entro com eles
na barca da solidão, falando com o vazio
como se a única resposta fosse
a que nasce do musgo das caves. Afasto
de ao pé deles os cães que os seguem;
e vejo-os desaparecerem, mais
e mais longe, onde o futuro se dissipa
sob a névoa cinzenta das madrugadas
que nunca chegaram.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

#26 - SONETILHO VELHO E ACTUAL, José Fernandes Fafe

Companheiro, ouves os choupos
gemendo mágoas de agora?
Os ventos sibilam roucos
a hora da nossa hora.

Noite de almas, noite fria...
O luar não traz mensagem...
Cada noite tem um dia.
Noite tirana, que a rasguem.

Sofro, noite... Sofre gente...
Cantam galos para o nascente...
Futuro, como nos pagas?

Pausa mais pausa é demência.
Na noite da consciência
versos só podem ser pragas!

domingo, 31 de agosto de 2014

#25 - O ACENDEDOR DE LAMPIÕES, Jorge de Lima

Lá vem o acendedor de lampiões na rua!
Este mesmo que vem imperturbavelmente
parodiar o Sol e associar-se à Lua
quando a sombra da noite enegrece o poente.

Um, dois, três lampiões e continua
outros mais a acender interminavelmente
à medida que a noite aos poucos se acentua
e a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
ele que doura a noite e ilumina a cidade
talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua:
crenças, religião, amor, felicidade,
como esse acendedor de lampiões na rua!

terça-feira, 26 de agosto de 2014

#24 - MAGIA DOS PIRILAMPOS, Afonso Duarte

Cintilam na resteva os pirilampos:
-- Bailados de luz viva, logo morta.
Anda a crença a bater de porta em porta
Que há alminhas penadas pelos campos.

Luzem na floresta às vezes tantos
Que ao luzeiro macabro, além, da horta
Um frio gume de medo me recorta
-- O infantil medo que se esconde aos cantos.

E despedindo lume entre os silvedos,
Cruzam de agoiro a noite e de bruxedos,
Luzes de feiticeiras contradanças.

«Pirilampos debaixo da maquia»
Que vezes me embruxou vossa alquimia
Que magos! -- «para engano das crianças».

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

#23 - ARRAIAL, Américo Durão

A AQUILINO RIBEIRO.

Noite de S. João. Oiço os descantes
dum baile popular. Ao alto, a lua,
lindo balão, sobe no céu, flutua
sobre a cidade. Enlaçam-se os amantes

na volúpia da noite. Estralejantes,
cada foguete é uma espada nua,
risca no ar gestos de luz. A rua
é um bazar de anseios perturbantes.

Jovem, de branco, um marinheiro leva
pelo seu braço uma gentil pequena,
também de branco. E somem-se na treva...

Há bailes de bebés pelos terraços.
E eu volto a casa só, cheio de pena,
trazendo um sonho morto nos meus braços.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

#22 A NOITE DESCE, Florbela Espanca

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos castanhos, carinhosos,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!

quarta-feira, 30 de julho de 2014

#21 - "Becos ermos, noite escura", Admário Ferreira

Becos ermos, noite escura;
Para meu medo espantar
Em tão horrenda amargura
Afoito-me a assobiar...

segunda-feira, 14 de julho de 2014

#20 - APANHADOR DE PÉROLAS, Rosa Alice Branco

Às vezes a noite estende-se através da pele,
mas tu mergulhas até apanhar a pedra
lá no fundo
e uma clareira começa a abrir-se no buraco
por onde esvaziaste a noite.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

#19 - PELAS LANDES, À NOITE, Eugénio de Castro

Pelas landes e pelas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Pelas landes e pelas dunas.

Olhos de fósforo, esfaimados,
Numa pavorosa alcateia,
Andam, andam buscando ceia,
Olhos de fósforo, esfaimados.

Nas landes grandes, junto às dunas,
Um menino perdido anda,
Anda perdido a chorar anda,
Nas landes, junto às brunas dunas.

Senhor Deus de Misericórdia,
Protegei o róseo menino,
Protegei o róseo menino,
Senhor Deus de Misericórdia.

Porque nas landes e nas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Nas grandes landes e nas dunas.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

#18 - "Estende o manto, estende, ó noite escura", Filinto Elísio

Estende o manto, estende, ó noite escura,
enluta de horror feio o alegre prado;
molda-o bem c'o pesar dum desgraçado,
a quem nem feições lembram da ventura.

Nubla as estrelas, céu, que esta amargura
em que se agora ceva o meu cuidado,
gostará de ver tudo assim trajado
da negra cor da minha desventura.

Ronquem roucos trovões, rasguem-se os ares,
rebente o mar em vão n'ocos rochedos,
solte-se o céu em grossas lanças de água.

Consolar-me só podem já pesares;
quero nutrir-me de arriscados medos,
quero saciar de mágoa a minha mágoa!

quarta-feira, 21 de maio de 2014

#17 - DISCORD IN CHILDHOOD, D. H. Lawrence

Outside the house an ash-tree hung its terrible whips,
And at night when the wind rose, the lash of the tree
Shrieked and slashed the wind, as a ship's
Weird rigging in a storm shrieks hideously.
Within the house two voices arouse, a slender lash
Whistling she-delirious rage, and the dreadful sound
Of a male thong booming and bruising, until it had drowned
The other voice in a silence of blood, 'neath the noise of the ash.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

#16 - NOCTURNO, Sidónio Muralha

Um candeeiro.
Um recanto qualquer.
O pesadelo duma noite sem fim.


Um corpo de mulher
para quem chegar primeiro,


-- como se fosse um banco de jardim.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

#15 - CANTAM AO LONGE, Carlos Queirós

Cantam ao longe. Anoitece.
Faz frio pensar na vida;
E a Natureza parece
Dizer, em voz comovida,
Que o Homem não a merece.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

#14 - NOITE TRANSFIGURADA, Eugénio de Andrade

Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
-- chegaste,
nem eu sei de que horizontes.

Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
-- ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.

Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
-- ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.

domingo, 4 de maio de 2014

#13 - ALDEIA, Carlos Queirós

Eu e a noite,
Chegámos ao mesmo tempo
Àquela povoação:
-- Uma aldeia que eu guardo na memória,
Como se guarda duma noiva morta
A doce recordação.

Fecho os olhos e vejo-a: -- as casas, o moinho,
O coreto e a fonte...
Quem os ergueu, sabia quem eu sou;
E, -- para me encantar como eu, outrora,
Arrumava no quarto os meus brinquedos,
Tal-qual os arrumou.

Criança? -- Já o não era,
Ao mesmo tempo em que isto foi;
Mas ainda conservo a sensação
(Quase triste, de tão enternecida,)
De ser a noite
Que me levava pela mão...

sexta-feira, 2 de maio de 2014

#12 - NOCTURNO DE LISBOA, Eugénio de Andrade

Pela noite adiante, com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-réis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.

terça-feira, 22 de abril de 2014

#11 - FOI A NOITE QUE CHOROU?, Rebelo de Bettencourt

Eram em flor as estrelas
E de sonho era o luar!
-- Debrucei-me sobre a noite,
Para a ouvir e conversar.

Fiz-lhe as minhas confidências,
As suas mágoas lhe ouvi.
À noite amiga entreguei
Tudo o que por ti sofri.

Piedosa, a noite ia ouvindo
A minha dor, funda e amara.
Havia lágrimas no ar...
-- Se as havia, quem chorara?

Caía um luar mais fino,
um luar mais claro e belo.
-- Quem chorara? A noite ou eu?
Eu mesmo não sei dizê-lo!

sábado, 19 de abril de 2014

#10 - NOCTURNO, Antero de Quental

Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo -- triste e lento --
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...

A ti confio o sonho em que me leva
Um institnto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de ideal que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!

#9 - CANALIZA, m. parissy

canaliza

com o anoitecer o rapaz toma corpo de vulcão
inicia o percurso que o levará
a preencher o silêncio das imagens

agarrado às fissuras da terra
pousa o caderno e o lápis e voa

havia uma casa a que chamávamos de canaliza
era um edifício inacabado
onde guardávamos as armas
e os brinquedos -- uma ruína
de pó luminoso
pedaços de madeira e restos de tijolos

ali nos perdíamos em sonhos
até que o grito mudo das
gaivotas nos viesse acordar

ali havia rostos de riso e
assim era o castelo enclausurado
no meio da mediocridade e
na fugaz realização do corpo

as mãos flutuavam-nos
por entre gestos de batalhas
às vezes pela esperança
de ter nos dedos
os cheiros das raparigas
a quem dizíamos que tínhamos um castelo

e o anoitecer tornava
verdadeira essa aventura

no cimo dos galhos das árvores
no pátio da escola
se amarravam raparigas
em geral os outros passavam
e eram eles que nos olhavam
translúcidos

uma a uma lhes
enfiávamos dardos envenenados
areia pedras beijos

(é aqui que as mãos flutuantes
tornavam o sonho ainda mais
real e decretávamos ordens
uns aos outros)

a noite trazia ainda
a dimensão de todas
as visões:

um comboio de
livros que parava na mais
secreta estação
aí mergulhávamos
noutros sistemas solares
noutros corpos
noutros segredos que nem
a noite deixava adivinhar
ou
uma praia tão extensa como a nossa
mas que no horizonte mostrava
a porta de um abismo
e sob a areia por entre
as mesmas barcas
dançavam mulheres nuas

e nelas atracávamos as
embarcações feitas de piteira

hoje é a noite que está despedida
e pernoito no lado de lá do
meu fantasma

sexta-feira, 18 de abril de 2014

#8 - A NOITE-VIÚVA, Alexandre O'Neill

Uma pequena angústia sentida nos joelhos
Como o bater do próprio coração
E é a noite que chega
Não a noite-diamante
Mas a noite-viúva a noite
Sete vezes mais impura do que eu
Em passo obsceno em obscena força
Minúscula perversa venenosa

Escrevo o teu nome
Noite de amor que de longe me defendes
Escrevo o teu nome contra a noite obscena
Que a meu lado espera seduzir-me
Levar-me consigo
À porca solidão onde trabalha
À insónia sem margens ao vinho solitário
Duma pequena angústia
Escrevo todos os teus nomes
Puxo-os para mim tapo-me com eles
Na noite da surpresa
Noite feroz da surpresa
Noite do amor atacado de perto e conseguido
Alto e convulsivo
Noite dos amantes deslumbrados
Iluminados pelo demónio mais puro
Noite como uma punhalada ritual no invisível
Noite da vítima-triunfante

Escrevo o teu nome a meu favor e contra
Esta noite este murmúrio esta invenção atroz
A que chamam o dia-a-dia
Estas quatro minúsculas patas
Venenosas da angústia

Escrevo o teu nome cruel
Puro e definitivo.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

#7 DIA NEGRO, Francisco Costa

Toda esta noite um vento de agonia
lançou gemidos pelo espaço fora;
e foi tão baço o despontar da aurora,
que não sei afinal se já é dia.

No chão, em cada poça de água fria
um tronco nú em lentos pingos chora,
e o vulto da montanha mal aflora
da névoa que nas cristas se desfia.

O vento apaziguou-se, mas a noite
deixou sinais do seu raivoso açoite
no dia negro, regelado, triste.

E só me aquece este álgido conforto:
é bom que tudo esteja quase morto
se além de nuvens pouco mais existe.

sábado, 12 de abril de 2014

#6 - "Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite", Fernando Pessoa / Álvaro de Campos

Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite,
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.

#5 - "Cães ladram na noite", Ana Maria Soares

Cães ladram na noite
A insónia do quarto segue-lhes o rasto

quinta-feira, 10 de abril de 2014

#4 - FEITIÇOS, José Agostinho Baptista

Vejo-te, outra vez, pela berma das levadas, a
descer para o vale.
É a hora do lobo e dos medos nos invernos
antigos.
Na aldeia súbita que se desvenda, elas dançam
em círculo,
agitando as lanternas,
mas tu não sabes que prodígio se constrói no
âmago das trevas.
Elas cantam,
mas tu,
viajante das noites profundas, não conheces
o idioma das rainhas destronadas pelo dia.
A sua música de guizos vai para onde vais.
A água das levadas pára, transformada em
pedra.
O mar é negro e sobe até ao céu e depois
cai, como a grande solidão,
sobre as espáduas.
Em frente, na colina do terror, o teu filho
chora.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

#3 - COMBOIO DA LINHA DO NORTE, João Miguel Fernandes Jorge

Olhava o vidro. Começou primeiro por
distinguir as vivas luzes da carruagem.
Depois em confusão esbatida
múltiplos rostos de quem ia sentado
noutros lugares. A noite
corria lá fora, o negro, o clarão
repentino de qualquer terra. Velho,
via agora nessa janela, vinte e muitos anos
atrás, o rosto que fora o seu, rapaz,
e é hoje esta nova face.
Inquieto, num corpo que era seu,
apertou como outrora
as mangas da camisola azul
em torno do pescoço e ficou quase
perdido na solitária, rápida, descida
da vida. Ao seu lado um amigo, antigo,
mas já tão depois desses anos juvenis,
cruzou os olhos com os dele
na superfície do vidro e da noite – espelho
de tantos anos –, e perguntou-lhe «o
que foi?»
«Não foi nada. Coisas de velhice que
ocorrem quando nem sabemos.»

As luzes de Vila Franca já vão lá
fora e a ponte. Que longe os campos que
foram os do Mondego
onde ficou a lua
cheia de outubro. Há vinte e muitos anos
um cão ligava sempre este regresso ou
partida, esta viagem, a um prolongado uivo
quase de campo a campo, de vila a
vila. Hoje também o olhar do cão se
perdeu na insonora carruagem. Do tempo ficou
o espelho, vidraça erguida sobre a planura
passada de uma vida. Quantas vidas.

#2 - "EL SORDO", João Candeias

na noite dos tormentos, nessa noite
em que os fantasmas deambulavam
pelo coração, olhou as paredes nuas
cegou-se de branca ausência, tamanho
cerco, e abriu janelas ao silêncio:
pintou terror, inferno, eternidade.
sonhara o sonho da razão
e o seu testamento escorreu lesto
pelos olhos da solidão.
aí, porque ouvira de novo o mundo
produziu monstros, como seria de esperar
do mundo


*(Goya)

terça-feira, 8 de abril de 2014

#1 ARDE UM FULGOR EXTINTO, Rui Knopfli

Arde um fulgor extinto
no longe da tarde agoniada.
Não me pesaria tanto
a caminhada se, em lugar do dia,
no seu extremo achasse a noite.

Exacta e concisa é a claridade.
Não mente à luz o que a noite
ilude. Terrível destino
o de quem é nocturno à luz solar.

Não vos ponha em cuidado,
porém, este meu penar:

são palavras e não sangram.