terça-feira, 22 de abril de 2014

#11 - FOI A NOITE QUE CHOROU?, Rebelo de Bettencourt

Eram em flor as estrelas
E de sonho era o luar!
-- Debrucei-me sobre a noite,
Para a ouvir e conversar.

Fiz-lhe as minhas confidências,
As suas mágoas lhe ouvi.
À noite amiga entreguei
Tudo o que por ti sofri.

Piedosa, a noite ia ouvindo
A minha dor, funda e amara.
Havia lágrimas no ar...
-- Se as havia, quem chorara?

Caía um luar mais fino,
um luar mais claro e belo.
-- Quem chorara? A noite ou eu?
Eu mesmo não sei dizê-lo!

sábado, 19 de abril de 2014

#10 - NOCTURNO, Antero de Quental

Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo -- triste e lento --
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...

A ti confio o sonho em que me leva
Um institnto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de ideal que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!

#9 - CANALIZA, m. parissy

canaliza

com o anoitecer o rapaz toma corpo de vulcão
inicia o percurso que o levará
a preencher o silêncio das imagens

agarrado às fissuras da terra
pousa o caderno e o lápis e voa

havia uma casa a que chamávamos de canaliza
era um edifício inacabado
onde guardávamos as armas
e os brinquedos -- uma ruína
de pó luminoso
pedaços de madeira e restos de tijolos

ali nos perdíamos em sonhos
até que o grito mudo das
gaivotas nos viesse acordar

ali havia rostos de riso e
assim era o castelo enclausurado
no meio da mediocridade e
na fugaz realização do corpo

as mãos flutuavam-nos
por entre gestos de batalhas
às vezes pela esperança
de ter nos dedos
os cheiros das raparigas
a quem dizíamos que tínhamos um castelo

e o anoitecer tornava
verdadeira essa aventura

no cimo dos galhos das árvores
no pátio da escola
se amarravam raparigas
em geral os outros passavam
e eram eles que nos olhavam
translúcidos

uma a uma lhes
enfiávamos dardos envenenados
areia pedras beijos

(é aqui que as mãos flutuantes
tornavam o sonho ainda mais
real e decretávamos ordens
uns aos outros)

a noite trazia ainda
a dimensão de todas
as visões:

um comboio de
livros que parava na mais
secreta estação
aí mergulhávamos
noutros sistemas solares
noutros corpos
noutros segredos que nem
a noite deixava adivinhar
ou
uma praia tão extensa como a nossa
mas que no horizonte mostrava
a porta de um abismo
e sob a areia por entre
as mesmas barcas
dançavam mulheres nuas

e nelas atracávamos as
embarcações feitas de piteira

hoje é a noite que está despedida
e pernoito no lado de lá do
meu fantasma

sexta-feira, 18 de abril de 2014

#8 - A NOITE-VIÚVA, Alexandre O'Neill

Uma pequena angústia sentida nos joelhos
Como o bater do próprio coração
E é a noite que chega
Não a noite-diamante
Mas a noite-viúva a noite
Sete vezes mais impura do que eu
Em passo obsceno em obscena força
Minúscula perversa venenosa

Escrevo o teu nome
Noite de amor que de longe me defendes
Escrevo o teu nome contra a noite obscena
Que a meu lado espera seduzir-me
Levar-me consigo
À porca solidão onde trabalha
À insónia sem margens ao vinho solitário
Duma pequena angústia
Escrevo todos os teus nomes
Puxo-os para mim tapo-me com eles
Na noite da surpresa
Noite feroz da surpresa
Noite do amor atacado de perto e conseguido
Alto e convulsivo
Noite dos amantes deslumbrados
Iluminados pelo demónio mais puro
Noite como uma punhalada ritual no invisível
Noite da vítima-triunfante

Escrevo o teu nome a meu favor e contra
Esta noite este murmúrio esta invenção atroz
A que chamam o dia-a-dia
Estas quatro minúsculas patas
Venenosas da angústia

Escrevo o teu nome cruel
Puro e definitivo.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

#7 DIA NEGRO, Francisco Costa

Toda esta noite um vento de agonia
lançou gemidos pelo espaço fora;
e foi tão baço o despontar da aurora,
que não sei afinal se já é dia.

No chão, em cada poça de água fria
um tronco nú em lentos pingos chora,
e o vulto da montanha mal aflora
da névoa que nas cristas se desfia.

O vento apaziguou-se, mas a noite
deixou sinais do seu raivoso açoite
no dia negro, regelado, triste.

E só me aquece este álgido conforto:
é bom que tudo esteja quase morto
se além de nuvens pouco mais existe.

sábado, 12 de abril de 2014

#6 - "Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite", Fernando Pessoa / Álvaro de Campos

Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite,
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.

#5 - "Cães ladram na noite", Ana Maria Soares

Cães ladram na noite
A insónia do quarto segue-lhes o rasto

quinta-feira, 10 de abril de 2014

#4 - FEITIÇOS, José Agostinho Baptista

Vejo-te, outra vez, pela berma das levadas, a
descer para o vale.
É a hora do lobo e dos medos nos invernos
antigos.
Na aldeia súbita que se desvenda, elas dançam
em círculo,
agitando as lanternas,
mas tu não sabes que prodígio se constrói no
âmago das trevas.
Elas cantam,
mas tu,
viajante das noites profundas, não conheces
o idioma das rainhas destronadas pelo dia.
A sua música de guizos vai para onde vais.
A água das levadas pára, transformada em
pedra.
O mar é negro e sobe até ao céu e depois
cai, como a grande solidão,
sobre as espáduas.
Em frente, na colina do terror, o teu filho
chora.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

#3 - COMBOIO DA LINHA DO NORTE, João Miguel Fernandes Jorge

Olhava o vidro. Começou primeiro por
distinguir as vivas luzes da carruagem.
Depois em confusão esbatida
múltiplos rostos de quem ia sentado
noutros lugares. A noite
corria lá fora, o negro, o clarão
repentino de qualquer terra. Velho,
via agora nessa janela, vinte e muitos anos
atrás, o rosto que fora o seu, rapaz,
e é hoje esta nova face.
Inquieto, num corpo que era seu,
apertou como outrora
as mangas da camisola azul
em torno do pescoço e ficou quase
perdido na solitária, rápida, descida
da vida. Ao seu lado um amigo, antigo,
mas já tão depois desses anos juvenis,
cruzou os olhos com os dele
na superfície do vidro e da noite – espelho
de tantos anos –, e perguntou-lhe «o
que foi?»
«Não foi nada. Coisas de velhice que
ocorrem quando nem sabemos.»

As luzes de Vila Franca já vão lá
fora e a ponte. Que longe os campos que
foram os do Mondego
onde ficou a lua
cheia de outubro. Há vinte e muitos anos
um cão ligava sempre este regresso ou
partida, esta viagem, a um prolongado uivo
quase de campo a campo, de vila a
vila. Hoje também o olhar do cão se
perdeu na insonora carruagem. Do tempo ficou
o espelho, vidraça erguida sobre a planura
passada de uma vida. Quantas vidas.

#2 - "EL SORDO", João Candeias

na noite dos tormentos, nessa noite
em que os fantasmas deambulavam
pelo coração, olhou as paredes nuas
cegou-se de branca ausência, tamanho
cerco, e abriu janelas ao silêncio:
pintou terror, inferno, eternidade.
sonhara o sonho da razão
e o seu testamento escorreu lesto
pelos olhos da solidão.
aí, porque ouvira de novo o mundo
produziu monstros, como seria de esperar
do mundo


*(Goya)

terça-feira, 8 de abril de 2014

#1 ARDE UM FULGOR EXTINTO, Rui Knopfli

Arde um fulgor extinto
no longe da tarde agoniada.
Não me pesaria tanto
a caminhada se, em lugar do dia,
no seu extremo achasse a noite.

Exacta e concisa é a claridade.
Não mente à luz o que a noite
ilude. Terrível destino
o de quem é nocturno à luz solar.

Não vos ponha em cuidado,
porém, este meu penar:

são palavras e não sangram.