domingo, 4 de dezembro de 2016

#53 - O CAVALEIRO E O ANJO, José Afonso

Passos da noite
Ao romper do dia
Quantos se ouviram
Marchando a par
Batem à porta
Da hospedaria
Se for o vento
Manda-o entrar

Vejo uma espada
De sombra esguia
Se for o vento
Que venha só
Quem está lá fora
Traz companhia
Botas cardadas
Levantam pó

Venho de longe
Sem luz nem guia
Sou estrangeiro
Não sou ninguém
Na flor queimada
Na cinza fria
Nunca se passa
Uma noite bem

Foge estrangeiro
Da morte escura
Pega nas armas
Vem batalhar
E enquanto a lua
Não se habitua
Dorme ao relento
Até eu voltar

Há muito tempo
Que te não via
(Um anjo negro
Me vem tentar)
Batem à porta
Da hospedaria
É aqui mesmo
Que eu vou ficar

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

#52 - "Ah, a noite que eu, sem fim, passei...", Ibn Sara

Ah, a noite que eu, sem fim, passei...
O Tempo alargava a sua duração
E dava-lhe o cerne do que na vida amei.
Comentaram alguns, pela noite fora,
Como se ia escoando a sua mansidão.
Mas a noite somente consentia a aurora...

Das nuvens tão denso era o breu
Que já não se sabia o que era Terra ou Céu.
Ao longe o raio entre trevas se escondia:
Era um negro que entre lágrimas sorria.

Brandi alto o sabre da minha vontade
E tingi o manto dessa mesma aurora
Ao ferir o colo da escuridade
Com o sangue da noite, pela noite fora.


(versão de Adalberto Alves)

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

#50 - CASA DESERTA, Mário Dionísio

Ah nada pior que a casa deserta,
sozinha, sozinha.

O fogão apagado e tudo sem interesse.
O mundo lá longe, para lá da floresta.
E o vento soprando
e a chuva caindo
e a casa deserta...

Ah nada pior que estes dias e dias,
de cachimbo aceso, com as mãos inertes,
com todas as estradas inteiramente barradas,
ouvindo a floresta.
Com tudo lá longe, na casa deserta,
ouvindo eternamente o vento soprando
e a chuva caindo, na noite, caindo...

Há uma cancela de madeira que ginga nos gonzos.
E um velho cão de guarda que ladra sem motivo.
Parece que é gente que vem a entrar.

E é só o vento soprando, soprando,
e a chuva caindo...

Mudaram muita vez as folhas da floresta.
E os olhos do homem são olhos de doido.
Fogão apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.

Ah nada pior que a casa deserta,
cheia dum sonho imenso que ficou na cabeça.
A casa deserta na noite deserta.

E o vento soprando
e a chuva caindo
e a casa deserta...

terça-feira, 4 de outubro de 2016

#49 - ACODE A NOITE..., António Luís Moita


Acode a noite, o dia se apagando.
A cidade impõe-se outra face.
O mistério, agora, é lírico e é brando.
se a mão lhe toca, abre-se.

É noite funda. Dos bas-fond diversos
o som que vinha, lúbrico, morreu...

-- É Deus, que assiste à dor de fazer versos.
Foi a minh'alma que se mereceu.


sexta-feira, 30 de setembro de 2016

#48 - "Cai a noite.", Ibn Sara

Cai a noite.
     Sob o manto da sombra
     O braseiro é um bálsamo
     Que sara o aguilhoar
     Dos escorpiões do frio.
     Ardente, talhou as mantas,
     O nosso cálido abrigo
     Onde frio se não consente.

O incêndio na lareira
(Nós olhando fascinados
E a grande taça de vinho
Que vai passando em redor)
Mal nos permite a intimidade
E logo nos afasta.

É uma mãe,
     Que umas vezes nos amamenta
     E outra nos retira o peito.


(versão: Adalberto Alves)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

#47 - NOITE NOS JARDINS DA GULBENKIAN, Luís Filipe Castro Mendes

O limo, o lume, as áleas protegidas
e a noite que chega
sem nos perguntar.

E se o jardim, súbita melodia
nas áleas a perder-se, só memória,
fosse afinal complacência muda
e o nosso grito o lume que defende as áleas
do peso de ser noite?

Mas quem arrisca um grito,
da vida que nos coube?

terça-feira, 13 de setembro de 2016

#46 - CANÇÃO NOCTURNA (Reinaldo Ferreira [F.º])

Café de cais
onde se juntam
anónimos de iguais,
os ratos dos porões,
babel de todos os calões,
rio de fumo e de incontido cio,
sexuado rio,
que busca, único mar,
mulheres de pernoitar,
unge-te a nojo, não Anfitrite,
fina ficção marinha,
mas nauseabundo
e tutelar
o vulto familiar
da Virgem Vício,
Nossa Senhora do Baixo Mundo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

#45 - OLIVAIS, COIMBRA, Fernando Assis Pacheco

Era de noite e eu pensava
não: era de noite uma outra noite mais antiga do que a narrativa deixa subentender
não: era de noite agora e na hora e eu que me enrolava pensando na morte do meu
                                                                                                                              [corpo

não: era de noite àquela hora a alegria
das casas funde-se com um estalido cruel
diante do poema não: quando à garganta vai subir
o primeiro poema informe

o pai dormia (uma cidade dormia) não: no meio do Verão
em Coimbra atacado pelo perfume aflitivo das hortênsias ou era
um clic na madeira vendo-se longe o Tovim o Picoto luzes
inverosímeis

essa noite é que o miúdo pensava na brevidade de tudo isto